sábado, 1 de outubro de 2011

Neutrinos mais velozes que a luz: a reação dos cientistas

No dia 23 de setembro, os jornais anunciaram a suposta observação de partículas mais velozes que a luz em um laboratório em Gran Sasso, na Itália. A Colaboração OPERA, que envolve cientistas de cerca de 40 instituições de pesquisa europeias e asiáticas, detectou neutrinos com velocidades pouco mais de dois milésimos por cento acima da da luz. Neutrinos são partículas subatômicas extremamente leves (massa 350 mil vezes menor que a de um elétron, ou ainda mais leves) e interagem muito fracamente com a matéria. São só 0,00248% mais velozes que a luz, mas o experimento foi muito preciso e para muitos esse resultado, se correto, ameaçaria derrubar a teoria da relatividade especial. Acima, fotos dos enormes detetores do OPERA.

Como os cientistas estão reagindo a isso?


Com a palavra, os entendidos

No sábado, o blog do arXiv mostrou uma seleção de nove artigos sobre isso escritos desde o bombástico anúncio. Eles dão uma ideia interessante do que os cientistas andam pensando, como sustentam suas críticas, e como os teóricos pensam em lidar com a situação. Como são técnicos, vou tentar mostrar aqui o que dizem.

No caso geral, a maioria continua cética, mesmo que os cientistas do OPERA tenham sobrevivido a um interrogatório de especialistas no CERN (o mesmo centro de pesquisas que é responsável pelo acelerador LHC, em Genebra, Suíça). A razão é que o resultado parece contradizer frontalmente a teoria da relatividade especial. Não se trata apenas de conservadorismo acadêmico: esta teoria vem sendo confirmada espetacularmente em quase um século de testes.

Repare-se, aliás, que os próprios pesquisadores do OPERA foram os primeiros a dizer, no seu próprio artigo, que os resultados precisam ser confirmados por pesquisas independentes antes de se chegar a qualquer conclusão definitiva. É natural que os cientistas sejam cautelosos ao anunciar tal coisa. Um alarde exagerado seguido de uma refutação pode ser extremamente humilhante e tirar sua credibilidade junto aos colegas.

Mas os artigos selecionados pelo blog do ArXiv são muito variados, desde os que refutam frontalmente os resultados até os que já ensaiam os primeiros passos para reescrever a relatividade.

Como lembrou o cientista grego Alex Kehagias, da Universidade de Atenas, as explicações para os resultados do OPERA se encaixam em três tipos possíveis:

a) A anomalia é devida a algum erro dos autores;
b) A anomalia é real e indica uma violação da teoria da relatividade especial;
c) A anomalia é real, os neutrinos viajam mais rapidamente que a luz, mas a teoria da relatividade não é violada (sim, isso é possível, como veremos abaixo).

Além da relatividade - Apenas um dos nove artigos ousou encarar o desafio de construir uma teoria alternativa à relatividade especial. Foi de uma equipe de três cientistas do CERN e do King's College de Londres. Eles não fizeram uma teoria completa, nem perto disso, mas indicaram um método para fazê-lo e produziram com ele duas "teorias de brinquedo" ("toy theories"), isto é, modelos simplificados apenas para deixar claros os conceitos envolvidos e as técnicas matemáticas utilizadas. Também, mostraram como os cientistas poderiam verificar no laboratório se alguma teoria feita com esse método poderia estar correta.


Os descrentes

"Refutamos" - Entre os que simplesmente não acreditam nos novos dados, está ningúem menos que o prêmio Nobel de Física de 1979, Sheldon L. Glashow, da Universidade de Boston, nos EUA. "Refutamos a interpretação superluminal dos resultados do OPERA", dizem explicitamente no resumo do artigo, escrito junto com Andrew G. Cohen.

Claro que eles apresentam razões para sua descrença. Após alguns cálculos, concluíram que neutrinos naquela velocidade perderiam energia rapidamente - sua energia seria convertida em matéria no caminho, produzindo uma quantidade de elétrons e pósitrons (o pósitron é uma partícula idêntica ao elétron, só que com carga elétrica positiva). Pelas suas contas, os neutrinos não poderiam de jeito nenhum ter chegado com tanta velocidade no detector do OPERA, situado a 730 km da fonte que os produziu, no CERN, em Genebra.

Cuidado com o tempo - Outros apontam possibilidades de erros de interpretação por parte dos cientistas do OPERA. Aí há argumentos de toda espécie: Susan Gardner, da Universidade do Kentucky, nos EUA, chega a invocar efeitos cosmológicos relacionados com a matéria escura. Argumentos mais "terrestres" foram dados por Carlo Contaldi, do Imperial College de Londres. Ele acha que os pesquisadores foram "enganados" por uma sutileza relacionada com o tempo. Pela teoria da relatividade especial, naquelas velocidades o tempo se comporta de maneira bem diferente da usual e nossa intuição pode nos pregar peças desagradáveis. O próprio conceito de "simultaneidade" torna-se melindroso e é preciso escolher uma convenção clara e aferrar-se a ela, para não ser ludibriado pela própria intuição. É verdade que lidar com esses problemas é um ato corriqueiro em cálculos envolvendo velocidades próximas às da luz, mas as coisas podem se complicar muito em sistemas acelerados ou girantes - Contaldi tem dúvidas especificamente sobre os efeitos da rotação da Terra na convenção para se definir simultaneidade.

A estatística prega peças - No outro extremo está Robert Alicki, da Universidade de Gdánsk, na Polônia, que acha que as coisas são muito simples: tudo seria devido a um mero erro de interpretação estatística. A razão é que o dados colhidos pelo OPERA são em número gigantesco e devem ser analisados estatisticamente, o que é uma tarefa difícil e cheia de armadilhas conceituais - terreno fértil para especulações sobre algum erro sistemático cometido em Gran Sasso. Mas o paper de Alicki, de uma única página, é tão simples quanto difícil de acreditar, diante do cuidado extremo que os pesquisadores do OPERA parecem ter tomado em três anos de análise de dados.


Os conciliadores: relatividade com velocidade superluminal

Ao contrário do que normalmente se diz, velocidades maiores que a da luz não são necessariamente incompatíveis com a relatividade especial.

Os táquions - Em primeiro lugar, o que a relatividade especial proíbe é que se ultrapasse a velocidade da luz, e só isso. Ela é perfeitamente consistente com a hipótese de partículas viajando sempre mais rápido que a luz. Tais entidades são chamadas táquions. O problema é o preço conceitual disso: os táquions se acelerariam quando perdem energia, tendendo sempre a velocidades cada vez maiores, e também viajariam para trás no tempo...! Mais informações sobre táquions neste artigo da Ciência Hoje (em PDF).

Mas parece que os neutrinos não são táquions. Dois artigos da lista do blog do arXiv concluem que essa possibilidade não é compatível com o comportamento observado em neutrinos em outras situações, especificamente os vindos de supernovas. Um dos trabalhos foi assinado por quatro cientistas italianos e dinamarqueses e o outro por três, do Reino Unido e do CERN.

Outras dimensões - Há outra possibilidade: considerar dimensões espaciais extras além das três conhecidas. Apesar de soar bizarro, é uma estratégia bastante popular em teorias alternativas da física de partículas, como na teoria das cordas. Para entender o argumento, é útil uma analogia com a segunda dimensão. Imagine uma joaninha caminhando sobre um papel. Agora curve o papel, de forma a aproximar suas bordas.
Ali na beirada, a joaninha pode simplesmente, com um pouco de ginástica, passar de uma ponta a outra do papel. Ou pode haver até um "túnel" para ela passar, como na figura abaixo:


Para uma companheira que não tenha capacidade de perceber a dobra do papel e para a qual o mundo se reduz a apenas duas dimensões, parecerá que a outra percorreu o papel de lado a lado em uma velocidade alucinante.

A limitação dessa analogia é que nela a joaninha pareceria passar instantaneamente de um lado a outro, e não numa velocidade muito grande. No entanto, há várias teorias na física que tentam compatibilizar velocidades maiores que a da luz com configurações de espaços com quatro ou mais dimensões. São, obviamente, ainda especulativas. Um dos artigos da lista do ArXiv aplica exatamente isso para explicar os neutrinos superluminais e salvar a teoria da relatividade. Foi assinador por Steven Gubser, da Universidade de Princeton, nos EUA (coincidentemente, a mesma onde Einstein se empregou quando se mudou aos Estados Unidos).

Força desconhecida - Uma terceira possibilidade, uma ideia do grego Alex Kehagias, da Universidade de Atenas, é um tanto desconcertante. Ele supõe que a Terra produza um campo de forças ainda desconhecido (um campo quântico escalar), diferente do gravitacional ou do magnético. Curiosamente - por isso parece desconcertante -, seus cálculos mostram que esse campo é compatível com a relatividade e, ao mesmo tempo, capaz de produzir velocidades maiores que a da luz para os neutrinos!

Conclusão de tudo isso? Por enquanto, ainda é cedo para tanto. Provavelmente teremos que esperar para ver se outros grupos conseguem reproduzir os resultados do pessoal do OPERA. Isso pode levar alguns anos - só o experimento inteiro do OPERA já durou três.


Para saber mais:

Vídeo da palestra do pessoal do OPERA no CERN, explicando seus resultados (em inglês).

"Táquions - Mais velozes que a luz?" (Erasmo Recami e Michel Z. Rached) - Ciência Hoje 170 (2001). Disponível aqui (em PDF).

Este post no blog Física, futebol e falácias contém vários links para bons textos sobre o assunto.

Artigo científico original da Cooperação OPERA.

Neste outro artigo científico, de 2007, outra colaboração, o MINOS, do Fermilab, em Chicago, nos EUA, também diz ter observado neutrinos mais velozes que a luz.